Eremotherium, a Preguiça terrícola gigante, exemplar compósito feito a partir de fósseis baianos, do Município de Jacobina, exposto no Museu Nacional, Rio de Janeiro.
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"Lei estadual exige repatriação de fósseis e gera debate entre paleontólogos
Nacional"
por Silvana Losekann
Publicado em 22 de maio de 2009
por:
http://www.defender.org.br/lei-estadual-exige-repatriacao-de-fosseis-e-gera-debate-entre-paleontologos/
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Legislação mineira forçou compromisso de devolução por grupo da USP. RS possui disposição parecida; discussão é se há conflito com lei federal.
Estudar fósseis no Brasil pode se tornar consideravelmente mais complicado. Os restos de animais e plantas do passado remoto, considerados patrimônio da União pela (vaga) legislação existente, estão sendo reivindicados por seus estados de origem. O caso mais recente envolve crocodilos de 90 milhões de anos, estudados por um pesquisador da USP de Ribeirão Preto, que terão de ser devolvidos a instituições de Minas Gerais.
Os paleontólogos se dividem sobre a obrigatoriedade de devolver os fósseis. Se a medida pode, por um lado, fortalecer os núcleos locais de pesquisa, também corre o risco de levar ao armazenamento do material em locais inadequados ou mesmo a “reservas de mercado” de natureza política. “O que eu realmente gostaria de saber é se essa regra vai ser aplicada a todos os que trabalham em Minas Gerais”, disse ao G1 o paleontólogo Max Cardoso Langer, da USP.
No ano passado, Langer foi alertado da presença de fósseis potencialmente interessantes em Campina Verde (MG), município do Triângulo Mineiro, por seus colegas da Sociedade Brasileira de Paleontologia (SBP). “Verificamos que havia ali três crânios de baurussuquídeos [parentes extintos dos crocodilos, com hábitos terrestres e cerca de 3 m de comprimento]. É um material legal, de 40% a 50% completo, que pode ser de uma espécie nova. Eu diria que tem relevância técnica”, avalia Langer. Um aluno de doutorado do paleontólogo vai estudar os fósseis.
Mas a condição para a realização da tese, colocada num termo de compromisso assinado por Langer e por representantes do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, é a devolução dos fósseis após um período de quatro anos. “Como Campina Verde não tem estrutura para abrigar o material, ele deve ficar na Universidade Federal de Uberlândia”, diz Langer, cujo objetivo inicial era permanecer com os fósseis em sua própria instituição.
Direito de retorno
Marcos Paulo de Souza Miranda, coordenador das Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Cultural de Minas Gerais, explica que a lei estadual que determina o retorno dos fósseis ao estado é de 1994. “Mas esta é a primeira vez, até onde tenho conhecimento, na qual ela é aplicada.” Segundo Miranda, a comunidade de Campina Verde teria entrado em contato com o Ministério Público “porque eles viram o material sendo coletado e não sabiam se ele ia voltar algum dia”.
A falta de legislação detalhada e específica é um dos motivos pelos quais os estados consideram legítimo criar disposições como a de Minas Gerais. Walter Lins Arcoverde, diretor de fiscalização do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), considerado o órgão regulador do tema no Brasil, explica que os fósseis foram definidos como propriedade da nação numa lei de 1942. A Constituição de 1988, de forma um tanto vaga, ratifica essa ideia, mas também diz que cuidar do patrimônio paleontológico é competência do governo federal, dos estados e dos municípios. Para piorar, não há penalidade estabelecida por lei para o comércio de fósseis dentro do Brasil ou do Brasil para o exterior — daí a presença ilegal, mas um bocado comum, de material brasileiro em museus do Primeiro Mundo, ou até em sites de comércio de fósseis na internet.
Por causa do que diz a Constituição, “entendo que não há conflito com a visão dos fósseis como bens da União. Os estados têm competência para legislar sobre isso”, diz Miranda, do Ministério Público mineiro. “Também é um princípio consagrado pelo direito internacional a vinculação dos bens culturais ao seu local de origem”, afirma.
No Rio Grande do Sul, uma lei que controla a pesquisa paleontológica também está em vigor desde 2001. A legislação estadual determina que os fósseis encontrados no estado (importantes por ajudarem a entender, por exemplo, a origem dos dinossauros há mais de 200 milhões de anos) só podem ser estudados por pesquisadores de outros locais do Brasil por meio de convênios com os paleontólogos gaúchos. Autorizações especiais são necessárias para transportar o material para fora do estado, e a lei também menciona rapidamente o “retorno” dos fósseis.
Ordem na casa
Ana Maria Ribeiro, paleontóloga da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul e vice-presidente da SBP, considera a lei de seu estado positiva por “botar ordem na casa”. “Nós temos centenas de alunos de mestrado e doutorado em paleontologia e toda a estrutura para manter o material aqui. Por isso, achamos que é uma questão de respeito, para evitar que alguém apareça do nada e ponha por água abaixo um trabalho sério que já estava acontecendo no estado”, explica.
Ribeiro lembra que, quando a SBP comunicou Langer sobre os fósseis em Campina Verde, pessoas da região haviam procurado a sociedade com medo de que o material, exposto na zona rural, se perdesse. Por isso mesmo, ela lembra a necessidade de garantir que os fósseis tenham condições adequadas de curadoria, se forem mesmo armazenados em Minas Gerais.
João Carlos Coimbra, atual presidente da SBP e pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), diz que esse tipo de lei pode ser positiva como forma de estimular a formação de paleontólogos capacitados no local onde os fósseis são encontrados.
Por outro lado, ele lembra que algumas regiões do Brasil teriam dificuldade tanto em estudar quanto em preservar seu patrimônio paleontológico. “O risco de engessar a pesquisa é uma realidade. Principalmente na paleontologia de vertebrados, alguém pode ter problemas políticos com outro pesquisador e dizer ‘não gosto dele, então não vou deixar entrar aqui’. Também não gosto dessa coisa de dizer que o fóssil fica aqui ou fica ali. Ele tem de ficar onde houver boas condições de curadoria”, diz Coimbra.
Experiência argentina
Mario Alberto Cozzuol, paleontólogo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) que trabalha há anos na Amazônia, lembra que as províncias argentinas possuem leis semelhantes às que estão sendo implementadas no Brasil.
“Embora essas exigências possam parecer uma problema, em especial para os pesquisadores dos grandes centros, eu as vejo como positivas porque fomentam o desenvolvimento da disciplina localmente. A paleontologia é uma disciplina fortemente dependente de coleções. Sem elas, nunca seria possível desenvolver um grupo de trabalho. Se os materiais podem ser livremente levados para fora dos estados de origem, será difícil para eles fomentar o desenvolvimento desses grupos. Hoje em dia existem apenas dois “centros” de paleontologia em Minas, um em Uberaba, no Triângulo, e outro em Belo Horizonte. Sem dúvidas, o potencial do estado é bem grande e permitiria mais pesquisadores”, diz ele.
A situação, no entanto, também pode degringolar se não houver cuidado e vigilância, alerta Cozzuol.
“Acho também que a legislação tem de ser realista e não fomentar o depósito de fósseis em locais inadequados ou onde não existe um especialista para se responsabilizar por eles. Já vi muito museu municipal desativado para ser transformado em escola de dança ou coisa semelhante. O Estado tem também de ficar atento para que esse tipo de legislação não acabe virando uma espécie de reserva de mercado que fomente uma barganha científica, beneficiando pesquisadores locais de nível medíocre por serem os detentores dos direitos sobre os fósseis, extorquindo os de fora com participação imerecida em trabalhos publicados ou com compensações como equipamentos ou outros recursos.”
Passou do ponto?
O ideal para evitar distorções seria mesmo uma legislação federal mais clara e efetiva, e Walter Arcoverde, do DNPM, diz que o órgão está trabalhando para levar uma proposta do gênero, via Executivo, a votação. “Acho que os estados, se a intenção for proteger o patrimônio e evitar sua destruição, podem ser mais restritivos. Mas a exigência do retorno, mesmo que sutilmente, parece exagerada. Creio que eles avançaram o sinal nesse sentido”, diz Arcoverde, que promete esforços para incorporar o problema, resolvendo-o, na legislação futura.
No entanto, Miranda, do Ministério Público mineiro, não vê sua atuação como entrave à pesquisa. “Os pesquisadores sérios, que tenham compromisso com o patrimônio, vão compreender essa necessidade. E, claro, seremos razoáveis na hora de decidir onde e como abrigar os fósseis”, afirma.
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