.
.
"Pedras e ossos do ofício"
Entrevista com Diógenes de Almeida Campos, a Marcos Pivetta.
.
Publicada no site da:
:
http://www.universiabrasil.net/
.
(Texto gerado automaticamente pela aplicação CVLattes)Diógenes Campos possui graduação em Escola de Geologia pela Universidade Federal da Bahia (1967) e mestrado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1978) . Atualmente é Geólogo do Departamento Nacional de Produção Mineral, Chefe do Museu de Ciências da Terra do Departamento Nacional de Produção Mineral, COORDENADOR DE PROGRAMA da Academia Brasileira de Ciências, MEMBRO EDITORIAL DE REVISTA CIENTIFICA da Academia Brasileira de Ciências, Membro Titular da Academia Brasileira de Ciências, PESQUISADOR ASSOCIADO da American Museum Of Natural History, PROFESSOR CONVIDADO da Universidade Federal do Rio de Janeiro, SECRET. E PRESIDENTE da Sociedade Brasileira de Paleontologia, da Universidade Regional do Cariri, Membro Titular da Academia de Ciências da America Latina e Membro da Comissão Externa de Lexicografia da Academia Brasileira de Letras. Tem experiência na área de Geociências , com ênfase em Geologia. Atuando principalmente nos seguintes temas: Paleontologia de Vertebrados, Sistematica, Répteis.
.
A matéria e a entrevista:
"Paleontólogo fala da pesquisa nacional, critica o contrabando de fósseis e diz que o Araripe pode ser o berço das plantas com flores"
.
Baiano de Irará que fez carreira no Rio de Janeiro desde fins dos anos 1960, Diógenes de Almeida Campos é um dos pilares da paleontologia nacional. Apesar de estar à frente do Museu de Ciências da Terra do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), que fica num belo e antigo prédio na Praia Vermelha, diz que seu lado burocrata é o que tem de mais fraco. “Sou uma negação como administrador”, afirma, modesto. Curte mesmo é ir a campo para procurar seus fósseis de dinossauros, pterossauros e outros vertebrados. Aos 61 anos, muito ativo, publica com freqüência trabalhos de impacto sobre répteis do período Cretáceo, que viveram entre 144 milhões e 65 milhões de anos atrás, muitos deles oriundos da Chapada do Araripe, situada entre os estados do Ceará, Pernambuco e Piauí.
Gosta de dar nomes brasileiríssimos, de origem indígena, às novas espécies que descreve, como os pterossauros Tapejara imperator e Anhangüera blittersdorff, ambos descritos a quatro mãos com um ex-aluno de doutorado, Alex Kellner, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que se tornou um de seus mais próximos parceiros de descobertas. Nesta entrevista Campos fala da história da paleontologia nacional, de seus pontos fortes e fracos, das semelhanças da paisagem geológica nordestina e da China. O contrabando de fósseis brasileiros também é abordado. “O problema é real, em especial no Araripe, e a gente tem de enfrentá-lo”, reconhece. O pesquisador também esclarece como deve funcionar a rede nacional de paleontologia, criada aparentemente de supetão no fim do ano passado.
.
Quando começa a paleontologia no Brasil?
— O objeto da paleontologia são os fósseis. Foi preciso encontrar fósseis para haver uma paleontologia brasileira. A data mais antiga é qualquer coisa em torno do final do século 17, princípio do 18, quando teriam sido encontrados ossos de mamíferos em cacimbas na Bahia, como se encontra ainda hoje no estado. Existe um livrinho, Notícias soteropolitanas, que foi escrito por um professor de lingua grega de Salvador, Luís dos Santos Vilhena. O autor fingia ter um amigo em Portugal e escrevia cartas. Ele criou a palavra “soteropolitano” para dizer que é “o natural de Salvador”. “Sotér”, em grego, é salvador; “pólis”, cidade. Então, era “notícias da cidade do Salvador”. E ele fala de um encontro no sertão dos tocós – tocós são os índios – em torno da cidade de Serrinha. Mas isso se perdeu completamente. O primeiro encontro de fósseis comprovado, documentado, é o material citado pelo barão de Eschewege, que foi um coronel do Exército português que veio com d. João VI para cá. O coronel encontrou o material em Minas Gerais, e registra essa ocorrência. Eram mamíferos fósseis do Pleistoceno (entre 1,8 milhão e 11 mil anos atrás), como os da Bahia. Mas o verdadeiro achado que a gente toma sempre como o início da paleontologia nacional é o desenho da cabeça de um peixe da chapada do Araripe, junto com ossos de mamíferos da Bahia, que saiu nos livros publicados pelo zoólogo [Johann Baptiste von] Spix e pelo botânico [Carl Friedrich Phillipp von] Martius entre 1823 e 1831. Eram dois cientistas da Bavária, naturalistas viajantes, que vieram ao Brasil e realizaram uma longa viagem de 1817 a 1820. Vieram na comitiva da princesa Leopoldina, que se casava com o príncipe d. Pedro. A gente brinca que isso já dá um samba de saída. Porque tem rei, tem princesa. Eles não passaram exatamente pela chapada, mas receberam de presente em Oeiras, Piauí, esses fósseis. Foi a primeira ilustração de um fóssil brasileiro que foi divulgado para o mundo. Era realmente um material fóssil de primeira. O ponto importante da descoberta é que, quando o desenho foi publicado, o Brasil já era Brasil.
.
Foto fonte: http://www.dnpm.gov.br
.
No Império, d. Pedro II estimulou a pesquisa geológica?
— Ele se interessava por isso e criou a Comissão Geológica do Império (em 1875). Antes disso houve as expedições Thayer (1865) e Morgan (1870). Essa última foi financiada pelo JP Morgan, estudou o litoral nordeste do Brasil e fora liderada por Charles Frederic Hartt, canadense que era professor de geologia na Universidade de Cornell, nos Estados Unidos. Já havia também a influência do Museu Nacional, que ainda não tinha sido transferido para a Quinta da Boa Vista, mas já tinha um papel importante, com um corpo de estudiosos, coleções, e era aberto a visitantes. Hartt trouxe o Orville A. Derby, que era um geólogo americano, e os dois juntos produziram uma obra bastante expressiva. Posteriormente Derby trabalhou em São Paulo, na Comissão Geológica e Geográfica do Estado de São Paulo, iniciou o mapeamento topográfico de São Paulo, porque não entendia como se podia fazer geologia sem fazer topografia. Isso foi demorado, gastava dinheiro, e ele foi bastante criticado. Hartt e Derby eram coletores de fósseis. Fizeram um trabalho excepcional. Viajavam, coletavam e mandavam os fósseis lá para fora.
.
A proclamação da República mudou muito esse quadro?
— Em 1905 o Brasil começou a enfrentar o problema energético. E o problema energético tinha de ser resolvido com o carvão brasileiro. Mas o carvão brasileiro, cujas jazidas ficavam no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, tinha alto teor de cinza, às vezes chegava a 23%, e alto teor de enxofre, o que atrapalhava a sua queima Na verdade, não era um carvão muito bom. E havia outro agravante: as máquinas da estrada de ferro, e outras que vinham para cá, eram feitas na Inglaterra para queimar carvão Cardiff, muito bom. Essas máquinas não se adaptaram a queimar o carvão de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. Para resolver o problema, optou-se então pela maneira mais simples: tentar encontrar no Brasil carvão de melhor qualidade. Os ingleses tinham feito isso na África do Sul. Foi isso que fez aparecer os fósseis no Brasil. O estudo de fósseis ligados ao carvão, principalmente vinculados à botânica, começou a se desenvolver. E mais: o estudo dessas minas de carvão, que teve início em Alagoas, na Bahia, e terminou no Sul, promoveu um levantamento geológico do Brasil todo e foi motivo de um relatório chamado “Relatório da Comissão das Minas do Carvão”, publicado em 1905 por um geólogo chamado Israel C. White. Esse é o Relatório White do Carvão. Esse relatório obrigou o governo federal a criar um órgão que se preocupasse com as minas do Brasil; não no sentido de dar concessão, como até hoje se faz, a concessão era feita, então um órgão qualquer, uma secretaria qualquer do ministério dava essa concessão. Mas para que estudasse, selecionasse as áreas para ajudar os mineradores a encontrar carvão e outros minerais. Então foi criado o Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil, em 1907. E o Derby é convidado para ser o primeiro diretor. Ele foi diretor de 1907 a 1915, imprimiu essa idéia de que era preciso fazer pesquisa científica para achar minério. Até então, a tendência original, a técnica portuguesa, era muito empírica, baseada na maneira prática, e sempre esteve muito dissociada do que se fazia na academia.
.
O Derby enterrou o legado português?
— Ele tentou romper com a forma empírica de achar minérios. Queria acabar com aquela história de usar uma varinha que vibra para achar água, como se faz até hoje no Nordeste. Tentou impor um método científico. Não teve muito sucesso, mas o foi o início de tudo. O mérito dele é esse. Ele se suicidou em 1915 e o Serviço Geológico passou a ter um novo diretor, Euzébio Paulo de Oliveira. Esse conseguiu impor o método científico. Para fazer isso, teve de fazer um mapa geológico do país. O mapa tem informação da rocha, mas para obter uma indicação da sua idade é preciso dos fósseis. Assim, os fósseis passaram a ser um item fundamental dentro do Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil. Na década de 1930 estávamos tentando resolver problemas geológicos. Esses terrenos são do Cretáceo ou do Terciário? Têm fósseis? Tinham. Mas ninguém sabia identificá-los. A maioria dos livros sobre paleontologia era escrita por franceses, ingleses, alemães, norte-americanos. E tratavam de faunas e floras do hemisfério Norte. Não era possível identificar os fósseis daqui, salvo algumas coisas. Era preciso criar uma ciência paleontológica. A solução foi pegar os lotes de fósseis e mandar para um especialista no assunto do exterior. E se pagava pela identificação do material. Essa foi a primeira solução para os fósseis brasileiros. Esse esquema continuou assim até mais ou menos o fim da década de 1930. Em 1937 houve a expedição da Universidade Harvard para a América do Sul, na qual os pesquisadores entram no Brasil para coletar fósseis. Dessa expedição faziam parte o Theodor White e Llewellyn Ivor Price, um gaúcho nascido há exatos cem anos em Santa Maria, mas que estudou e pesquisava nos Estados Unidos.
.
Como foi essa expedição? Foi nela que o Price encontrou no sul do país um dos mais antigos dinossauros do mundo, de cerca de 230 milhões de anos?
— Eles acharam esse dinossauro, o Staurikosaurus pricei, e deram o nome da espécie em homenagem ao Price. Foi uma expedição para estudo do período Triássico, que no Brasil só existe no Rio Grande do Sul. Mas, naquela época, os pesquisadores não se preocupavam muito com dinossauros. O maior interesse era por vertebrados, de preferência os répteis, que são parecidos com os mamíferos. A preocupação era tentar resolver o problema da origem do homem. Tentar descobrir esse grupo de répteis, os sinapsídeos, que hoje são quase colocados como uma classe à parte. A expedição teve alguns aspectos notáveis. Já era, por exemplo, preciso pedir licença ao Estado para fazer uma expedição. Isso foi feito e a documentação está guardada, toda, no arquivo do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) que está no Museu de Astronomia e Ciências Afins, no Rio de Janeiro.
.
Se já era preciso da autorização, por que o Staurikosaurus foi para Harvard?
— Esse exemplar saiu daqui com todas as autorizações. A política de mandar fósseis para fora estava no fim, mas ainda não tinha acabado. A essa altura, a Universidade de São Paulo (USP), que é de 1934, já estava preocupada em formar paleontólogos. Havia o Josué Camargo Mendes, que escreveu livros didáticos sobre paleontologia. Ele tinha feito estágio no DNPM, veio para cá várias vezes. Nesse meio tempo, o DNPM constituiu uma seção de paleontologia. Quando o Price voltou em definitivo para o Brasil, além do grupo da USP, já havia um núcleo de paleontologia incipiente no Museu Nacional. E ele chegou e começou a formar o pessoal daqui. O passo seguinte, importante, foi a necessidade de encontrar petróleo no Brasil. Mais uma vez um problema energético, agora o petróleo em vez do carvão, provoca e estimula a paleontologia. Daí a necessidade de ter cursos de geologia, dos quais a paleontologia é uma das cadeiras. A partir de 1960 surgem as escolas de geologia , todas com um departamento de estratigrafia e paleontologia. Quando entrei aqui no DNPM, em 1968, ele tinha 13 paleontólogos. Desses, cinco eram pesquisadores conferencistas, o título na época mais alto do CNPq, e todos eram da Academia Brasileira de Ciências. Nessa época havia paleontólogos também no Rio Grande do Sul, em Minas Gerais e um grupo pequeno em Recife. Na Bahia, minha alma mater, não tinha paleontologia, salvo na Petrobras. Tinha que aprender tudo sozinho. Quando vim para cá, disse “é aqui mesmo que eu fico”. E virei carioca nesse aspecto, embora continue falando que nem baiano.
.
Há poucos fósseis no Brasil ou pouca gente fazendo pesquisa?
— Alguns paleontólogos gostam de dizer que o Brasil tem poucos fósseis. Dizem isso comparando com Mongólia, Argentina, Estados Unidos, áreas que têm desertos e a preservação dos fósseis é melhor. Num país tropical os fósseis se estragam, intemperizam. Mas diria que no Brasil há muitos fósseis, só dá mais trabalho achá-los. Olhando um mapa geológico da América do Sul, vê-se que na Argentina e nos Andes há terrenos muito novos, fossilíferos. Mas mesmo assim se encontra muita coisa em rochas antigas. O Brasil está cheio de fósseis na bacia do Paraná, no Maranhão, no Piauí e em boa parte do Nordeste. E na Amazônia, naturalmente. Em alguns lugares do país tem menos. Precisamos de mais projetos que envolvam coletas de fósseis. Há muito projeto estudando fósseis já engavetados. Brinco que o pessoal está fazendo pesquisa em gaveta.
.
Mas não há muito fóssil engavetado que precisa ser estudado?
— Sim. Isso é importante. Mas é preciso também coletar, uma tarefa muito complicada e que envolve uma ética. Não se pode coletar por coletar, indiscriminadamente. Deve haver critério. Às vezes, a coleta é uma operação de salvamento. Alguém vai construir uma represa num lugar e a gente faz uma coleta no local para salvar o que existe de fósseis ali.
.
Então os paleontólogos ficam torcendo para que haja muitas obras para eles terem onde coletar?
— É preciso acompanhar a construção de tudo, de estádios, poços, estradas, ferrovias e coletar o que for possível. Se deixarmos o tempo passar, começa o intemperismo e a vegetação cobre os afloramentos e os fósseis desaparecem. Pela sua dimensão, o Brasil ainda vai dar muito fóssil. Em Sergipe, por exemplo, encontram-se fósseis na abertura de qualquer estrada nova na parte da praia, próxima ao litoral. Saíram fósseis da grande construção de todas aquelas estradas no oeste de São Paulo.
.
Por que as pessoas se interessam tanto por história natural, em especial fósseis de animais?
— Há uma curiosidade muito grande por essas exposições. Talvez porque haja uma participação de outras áreas do conhecimento, até artísticas, ao lado do trabalho paleontológico. Para fazer uma reconstituição de um dinossauro ou de um peixe fóssil, entra um pouco de... fingimento, de representação.
.
A representação artística de um bicho do passado é uma recriação, não quer dizer que ele era realmente assim.
— O paleontólogo pode ficar satisfeitíssimo com a reconstituição. Ele orientou a confecção daquele bicho, que foi feito com todo o rigor científico, com uma verossimilhança perfeita. Mas, na verdade, não é bem assim. Se pedirmos para outro paleontólogo orientar a feitura de uma reconstituição, ele vai mudar uma cor aqui, outra ali. Essa é a verdade. Mas sou a favor do uso dos fósseis como um item de educação para a ciência e difusão do conhecimento em espaços informais, como museus. Esse é um filão a ser explorado.
.
Por que os dinossauros se tornaram um ícone da paleontologia, ofuscando os fósseis de outros animais e das plantas?
— O interesse mais recente por esses animais começou a partir de um livro do paleontólogo americano Robert Bakker Heresias sobre dinossauros (publicado pela primeira vez nos anos 1960). Antes disso não havia tanta ênfase nos dinossauros, que eram animais grandes, lerdos e completamente desprezados. Achava-se até que alguns dinossauros precisavam de dois cérebros, um para mover a parte anterior do corpo e outro para mover a cauda. Depois do Bakker, uma série de pesquisadores nos Estados Unidos continuaram a coletar fósseis e aceitar alunos para estudá-los. O lançamento de filmes como Parque dos dinossauros também aumentou muito o interesse por esses bichos. Mas o pioneiro mesmo em destacar os dinossauros foi o autor do Sherlock Holmes, Arthur Conan Doyle. Em um de seus livros, tem um conto – O mundo perdido – em que ele fala de um vale na Amazônia e há pterossauros voando pelo Atlântico.
.
O Brasil tem uma contribuição a dar à paleontologia mundial, ou sua relevância é mais local ou regional?
— A contribuição é grande. A gente contribui com informações para a parte de Gondwana e temos dados que muitas vezes são endêmicos, próprias da América do Sul. Há também esse ponto sensacional que são os pterossauros que eu e o Alex Kellner descrevemos da chapada do Araripe e demos nomes brasileiros, o Anhangüera e o Tapejara. O mais interessante é que esses pterossauros foram agora encontrados na China. Em maio passado estive lá para ver esse material. Constatei que são os mesmos pterossauros, não da mesma espécie, mas do mesmo gênero. Agora, em maio, estou indo de novo para a China a convite deles. Então você tem assim um ponto de contato entre o Araripe e a China.
.
Como assim?
— Eles têm um depósito na província de Liaoning que para a gente é a antiga Mandchúria. É um lugar sensacional, com sedimentos muito parecidos com os que temos no Nordeste do Brasil. Há fossas profundas, como a bacia do Recôncavo, com quase 5 quilômetros de profundidade, cheias de sedimentos e ricas em fósseis. Quando voltei da China, no avião, disse ao Kellner: “Andei tanto pela Bahia e quebrei tão pouca pedra. Preciso voltar lá para quebrar mais pedra”. A gente tem que encontrar o que os chineses encontraram. Na China, eles têm peixes; nós também. Nós temos ostracóide (espécie de crustáceo), insetos, pterossauros; eles também. Eles têm muitos dinossauros, a gente tem três ou quatro. Eles têm dinossauros normais e os dinossauros com penas, aves e mamíferos. No Araripe ainda não achamos mamíferos. É possível que apareça um mamífero ali a qualquer momento. Não é incompatível com a região: a gente está na passagem do Cretáceo inferior para o superior. Pode aparecer um bichinho de pêlo ali a qualquer momento. Então, eu me sinto na obrigação de procurar. É engraçado em campo na China, eu me sentia na Bahia. Dizia: “Estou na Bahia, essa camada, esse basalto, eu já vi antes”.
.
Lá na China o senhor dizia isso?
— Na China, na Mandchuria. Há muitos fósseis ali e ainda vai aparecer muita coisa interessante, isso sem mencionar o que existe na Mongólia interior, nos desertos que eles têm no oeste do país. Em 1996, da vez anterior em que eu estive lá, o pessoal do instituto de paleontologia de vertebrados e paleoantropologia da Academia Chinesa de Ciências estava ganhando US$ 200 por mês. Havia pouca gente e muitas dificuldades. Mas, de lá para cá, eles cresceram muito na área. Mandaram muitos pesquisadores para a Europa, Estados Unidos, e aumentaram o intercâmbio com o exterior. Agora mesmo estão mandando dois pesquisadores para cá e nós acabamos de ir para lá. Acho que até duplicaram o salário dos pesquisadores. Para nós, o salário é baixo, mas lá eles têm casa e comida. E têm dinheiro para pesquisa. Todos eles estão com computador de último tipo na frente deles, com scanner, e boas máquinas digitais. Todos estão trabalhando, e muito, publicando no exterior. As revistas estão babando, correndo atrás deles.
.
Nós não poderíamos imitar os chineses?
— Eu não sei qual é o fascínio que a China tem. Nunca um editor da Nature ou da Science veio para cá pedir para a gente fazer artigo para eles. Isso eu vi lá na China. Até assisti a uma palestra de um editor, cuja base é nas Filipinas, em que ele dizia o seguinte: “Vocês preparem os artigos que nós temos interesse em publicar”. Para mim, a China – e essa é uma opinião puramente minha, de leigo – já deu um passo na frente da gente em ciência. Vai ser difícil alcançá-los. A gente pensava em surgir como parceiro da China, mas vai ser difícil. Eles já estão um pouco na frente. A massa crítica envolvida em pesquisa lá é enorme.
.
Qual o impacto do contrabando na paleontologia nacional?
— O problema é real, em especial no Araripe, e temos de enfrentá-lo. A legislação brasileira não permite a comercialização de fósseis. Para fazer uma escavação, se você não pertence a uma instituição de pesquisa, é preciso uma autorização do DNPM. Eu, de certa forma, influencio a política interna do órgão. E a política nossa é a seguinte: não damos a autorização para ninguém que tenha fins comerciais.
.
Quem sustenta o contrabando de fósseis, os colecionadores ou os museus de universidades do exterior?
— São as coleções de particulares. Hoje está na moda comprar os fósseis de insetos. Os museus sérios não compram, respeitam os acordos com o Brasil. Mas essa nem sempre é a posição dos Estados Unidos e da Inglaterra. O que me consola um pouco é que, mais cedo ou mais tarde, o material contrabandeado, se for realmente importante, vai ser descrito por um pesquisador. Lamento muito que isso acabe ocorrendo lá fora. Mas uma coisa ficou clara para mim nesses anos todos: quando há competência brasileira na área da paleontologia, dificilmente se perde um fóssil importante para o exterior. Veja o caso do Alex Kellner com os pterossauros: ele é muito ativo, corre atrás, dificilmente alguém vai fazer qualquer coisa lá fora com material daqui do Araripe. Os chineses sofrem com o mesmo tipo de problema. Mesmo lá, com todo o regime chinês, eles não conseguem controlar a saída de material.
.
Mas o Kellner e o senhor mesmo tiveram problema, há alguns anos, com um pesquisador inglês, David Martill, da Universidade de Portsmouth, que publicou um artigo sobre um fóssil de dinossauro do Araripe contrabandeado que era igual ou semelhante a um que vocês estavam estudando. Na época houve a suspeita de que o fóssil do inglês era um pedaço da peça estudada por vocês.
— A mesma peça não era. Era outra provavelmente contrabandeada. O que se pode fazer nesses casos? Temos de educar as populações locais para fazer concorrência ao contrabando. Temos de usar a Universidade Regional do Cariri como um pólo de atração; fizemos diferentes audiências públicas com a procuradoria de meio ambiente, para conscientizar autoridades e população. E também promover ações da Polícia Federal. Mas essas ações, para mim, são as que resolvem menos. Termina chamando mais a atenção sobre o assunto do que resolvendo o problema.
.
Mas a prisão de algumas pessoas por contrabando não mostra que a lei está sendo cumprida?
— Claro, prisões como a do contrabandista alemão Michel Schuwickert no Ceará em 2002 são ações importantes. Mas prender o lavrador do campo porque ganha algum dinheiro com o comércio de fósseis não tem sentido. Na época de seca, muitas vezes, o fóssil é uma garantia de ter um quilo de feijão ou de arroz na mesa do lavrador.
.
Qual é a sua posição pessoal sobre essa questão da venda de fósseis?
— Nunca comprei nada. Nem estimulo ninguém a comprar. Mas acho que o lavrador poderia ser alvo de uma troca, de um trabalho de convencimento por parte das universidades. Sempre procurei trabalhar a educação dessas pessoas. Elas poderiam receber livros, palestras. Também é preciso fazer museus nos locais onde ocorrem os fósseis. Assim, o morador pode ter ali, exposta, a peça coletada por ele, com o nome dele. Isso conta muito nas comunidades. Enfim, há uma série de coisas que podem ser feitas. Simplesmente prender o lavrador não resolve. Se não se fizer isso, o cara esconde os fósseis da gente e, depois, troca, vende, faz qualquer negócio com o primeiro paulista que aparecer.
.
Só os paulistas compram os fósseis?
— Não precisa ser paulista. No Nordeste, na Amazônia, qualquer pessoa que venha do Sul é, para eles, “paulista”. E, se tiver com dinheiro, é mais paulista ainda. Se tiver nome italiano então, é paulista mesmo. O contrabando é um assunto extremamente desagradável para mim. Mas, hoje, há no máximo um ou dois exemplares de fósseis de interesse para a ciência fora de museus, ainda que no exterior. Depois de algum tempo, o colecionador particular acaba passando a peça para o museu. Alguns pesquisadores da Alemanha e Japão estão tentando fazer um acordo com a gente para que pesquisadores brasileiros estudem junto fósseis que foram contrabandeados para lá.
.
Mas, em 1998, um pesquisador japonês publicou na Nature artigo sobre um fóssil de tartaruga marinha de 110 milhões de anos, que seria a mais antiga do planeta. Era um exemplar do Araripe. Era contrabando?
— Sem dúvida. Quando o pesquisador não fala como conseguiu o fóssil, é porque ele não tem como dizer que comprou de uma forma ilegal. Existem quatro tartarugas do Araripe descritas, três delas envolvem pesquisadores brasileiros. Só essa que não. Eu conversei com o japonês tempos depois e ele não sabia de nada.
.
Como o senhor reage diante de um artigo escrito por estrangeiros a partir de um fóssil brasileiro contrabandeado?
— É a coisa mais frustrante que existe. Apesar dos esforços, a gente não consegue cobrir tudo. Esse alemão (do contrabando), por exemplo, eu queria metê-lo na cadeia e jogar a chave fora. Ele argumenta que nunca pegou num fóssil. “As pessoas coletam uma peça para mim, me dão de presente e eu aceito”, ele costuma dizer.
.
Para os fósseis saírem do Brasil não é preciso um esquema que corrompa um certo de número de pessoas?
— Se as peças justificam o investimento de um estrangeiro se deslocar para cá, eles fazem de tudo. Dão gorjetas, propinas, pagam pelo trabalho de um lavrador para procurar fósseis. E dão mais propina pelos exemplares encontrados. Essas atividades se passam até nos aeroportos, embora haja ação permanente da Polícia Federal.
.
Quanto pode valer lá fora um fóssil de uma espécie rara ou nova para a ciência?
— Falam em milhares dólares, dependendo da peça. Mas isso é uma exceção. Há muita venda de lotes de fósseis para ornamentação, de grandes quantidades de bichos e insetos. Como não custou quase nada obter os fósseis, qualquer valor para essas peças ornamentais é lucro. Esse comércio, embora envolva peças sem novidades é muito prejudicial para a ciência, principalmente na área dos insetos, em que há muita coisa interessante no Araripe. Não gosto de dar valor monetário para os fósseis porque qualquer valor que eu dê passa a servir de referência. Nos lugares em que escavo no Araripe não sobra resto algum de fósseis no dia seguinte. O que tinha sobrado, mesmo sem importância, alguém pega. Eles acham que, se Dr. Diógenes coletou fóssil ali, então o lugar é bom.
.
O Araripe é realmente importante para a paleontologia mundial?
— Ali é tudo da fase final do Cretáceo inferior. Além de ter uma grande fauna de vertebrados, o Araripe tem uma flora muito importante, provavelmente com as primeiras plantas com flores do planeta. A Mary Elizabeth Bernardes de Oliveira, da Universidade de São Paulo, está estudando essa questão. Ali houve as primeiras florestas com flores, que vão mais tarde abrigar os mamíferos e as aves. É essa floresta que vai moldar toda a vida humana na Terra durante os últimos 65 milhões de anos e que vai permitir o aparecimento dos primatas e, conseqüentemente, do homem. São as plantas que preparam o ambiente para depois surgirem os animais que vão estar adaptados a ele.
.
Em dezembro, o ministro da Ciência e Tecnologia lançou em Uberaba o projeto de uma rede nacional de pesquisas em paleontologia, com orçamento previsto de cerca de R$ 6 milhões. Mas parece que poucos paleontólogos nacionais tinham conhecimento da iniciativa. É verdade que o senhor está à frente da rede?
— Estou numa situação pouco confortável. Foi feito um grande projeto em cima de um projeto meu, que tinha um determinado objetivo e era bem menor. De repente, me jogaram R$ 6 milhões em cima da mesa. No meu projeto original, queria fazer uma brinquedoteca, uma biblioteca, uma oficina dos dinossauros, um espaço lúdico, ao lado do museu de paleontologia que já existe em Peirópolis, no município de Uberaba. Mas lideranças políticas devem ter achado que era pouco e o meu projeto voltou ampliado, com uma rede por cima. Vamos ter de fazer correções nisso. Todos os pesquisadores vão ser ouvidos. Eu já disse isso para eles. O pessoal do Rio Grande do Sul, que foi excluído da rede, vai ser incluído novamente. Se não for assim, caio fora.
.
Saiu num jornal de São Paulo que um deputado havia conseguido o dinheiro para a rede, para Minas?
— É verdade. Foi o deputado Nárcio Rodrigues, do PSDB de Minas Gerais. Mas quero que seja constituído um conselho científico para a rede e esse conselho vai decidir quem vai receber dinheiro para pesquisa. Ninguém vai dar dinheiro para ninguém sem haver julgamento entre os pares, sem ter projeto científico. Não abro mão disso.
.
Mas quem coordena a rede?
— Quem está coordenando a parte financeira da rede é a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior de Minas Gerais. E eles me pediram para coordenar a parte científica da rede. Vou dar continuidade ao trabalho iniciado em 1986, de parceria do DNPM e a Prefeitura Municipal de Uberaba. Vou trabalhar com Beethoven Teixeira para que venhamos a ter em Peirópolis um centro de referência para dinossauros, em particular, e para fósseis brasileiros, no geral. Em Minas não há a massa crítica de paleontólogos para tocar a rede. Gente de outros estados têm de entrar na rede.
.