por Ricardo Chequer Chemas
...para Alanna de Ranagar
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Esta é uma conversa noturna, à beira de uma fogueira, que agora apenas começamos. Gosto de pensar que os meus interlocutores são de dois tipos: crianças e adolescentes, de verdade; e as crianças e os adolescentes que ainda habitam dentro de todos nós, inclusive dentro de mim mesmo.
Então, vamos contar uma história.
Para entender a nós mesmos e o mundo, de verdade, numa perspectiva cósmica, necessitamos primeiro ter a coragem de largar para trás o conceito coletivo (comum) de realidade: compartilhada, cotidiana, rotineira. O dia-a-dia dos telejornais e das telenovelas deve ser esquecido, temporariamente abandonado.
Precisamos ir buscar, de verdade, nossas origens cósmicas, não importa o quão remotas nos confins do espaço-tempo, nas malhas desta trama de que somos entretecidos, todos nós, das orquídeas até às estrelas.
Devemos ignorar, por alguns momentos, o nosso finito e limitado eu individual, com sua pequena linha do tempo medindo apenas meros e fugazes setenta anos de vida (em média), comparada à extensa e quase infinita duração da história universal.
Mergulhamos assim vertiginosamente de volta, às nossas próprias origens, perdidas na
escuridão da noite primordial.
Viajamos, a partir de agora, até o começo do Cosmos. Recuamos para trás no tempo, voltando a ser como peixes ou embriões, nadando livres e eternos no líquido amniótico do útero e do próprio espaço-tempo.
Voltamos ao instante do big bang, da grande explosão inicial, aonde toda a viagem cósmica se inicia. Lá longe, há cerca de treze bilhões de anos, um pequeno ovo de luz, do tamanho de uma semente de mostarda, explode espetacularmente, e se expande em seguida.
Enquanto se expande, a esfera crescente de luz esfria, formando gigantescas gotas de hidrogênio quase puro, largando como rastro coagulado uma enormidade de galáxias formadas de centenas de bilhões de estrelas gigantes, azuis, que nascem, vivem e morrem rapidamente como supergigantes vermelhas. Das suas cinzas ejetadas de volta ao espaço se formam então novas gerações de estrelas, todas filhas da grande nuvem inicial de hidrogênio (H, o elemento mais simples, formado apenas de um próton e um électron).
O hidrogênio agora, por sua vez, já está sendo cozido e transformado, no interior das
estrelas, por adição, primeiro em hélio e depois (também por adição ou fusão nuclear a partir deste segundo elemento), em elementos mais pesados e complexos, tais como o lítio, o nitrogênio, o oxigênio e o carbono.
Há também o grupo do ferro, formado em fases posteriores de velhas estrelas, e, quando uma estrela grande o suficiente, como uma supernova, explode, metais pesados e preciosos, tais como o Chumbo, o Cobre, o Ouro, o Mercúrio, a Platina, e também os elementos radioativos pesados, a exemplo do Urânio e do Tório, formam-se abundantemente.
Em verdade, todos os átomos da matéria que compõe os nossos corpos são forjados no coração das estrelas. Assim, o carbono em nossos corpos de mamíferos, o cálcio e o fósforo do esqueleto e dos dentes, o nitrogênio das proteínas, todos têm origem estelar. Somos feitos, de fato, da mesma matéria que plasma as estrelas.
E assim o Cosmos surge materialmente, desdobrando-se progressivamente por inteiro.
À medida que os sóis giram, em órbitas elegantes e elípticas, outras esferas agrupadas em órbitas distintas giram também em torno destas mesmas estrelas, corpos frios e sem luz própria, agrupadas pela força coesiva da gravidade (que faz com que matéria simplesmente atraia ainda mais matéria para um centro), cada um destes planetas sendo em si mesmos mundos inteiros, vastos em continentes, vales, crateras e estranhos mares ignotos.
Em alguns destes mundos, como no planeta Terra, cascas de matéria viva, biosferas de carbono, hidrogênio, oxigênio, nitrogênio, fósforo e enxofre (listados aqui em ordem
decrescente de suas abundâncias relativas nos corpos vivos), formam-se em suas superfícies aquosas, oceânicas.
Há cerca de quatro bilhões e meio de anos (aproximadamente), átomos, instigados pela radiação ultravioleta do Sol e dos relâmpagos (pois desabam sobre o planeta, nesta época, tempestades gigantescas), juntam-se em moléculas, colares sofisticados de átomos interligados em cadeias, e posteriormente em moléculas auto-reprodutoras ou replicadoras, as quais por sua vez se associam em estruturas esféricas, futuras bactérias e ainda mais futuros seres unicelulares, protozoários de vida livre, como os nossos ancestrais, os coanoflagelados.
Aparece depois a multiplicidade celular nos mares, com os poríferos (esponjas), verdadeiras colônias de protozoários coanoflagelados, e o sistema nervoso e o movimento com os cnidários (medusas e hidras). Em vastos e remotos oceanos, na aurora da existência deste mundo, vagam multidões de criaturas, organizações locais feitas da mesma água do mar que os cerca, curiosos seres gelatinosos de protoplasma, construídos numa sólida base de carbono, nadando em estonteante e multicolorida variedade.
Estranhos trilobitas se arrastam pelo fundo de mares exóticos, peculiares, povoados de escorpiões marinhos imensos, esponjas convolutas e outros vários e posteriormente
extintos invertebrados, anatomicamente sofisticados e múltiplos. Surgem os equinodermas (estrelas-do-mar, ouriços-do-mar e pepinos-do-mar), dotados de simetria radial e não bilateral como a nossa, e os nossos ancestrais cordados, providos de notocorda, o modelo cartilaginoso da futura coluna vertebral que emprestará o seu nome aos vertebrados, a exemplo das ascídeas, do balanoglosso e do venerável anfioxo, que ainda estará habitando as praias no século XXI, um ancião de mais de seiscentos milhões de anos.
Libélulas gigantes, com quase um metro de comprimento, voam por sobre pântanos fumegantes. Peixes estranhos arquejam, se arrastam para fora da água e arfam por mais oxigênio, porém um pequeno grupo consegue sobreviver no espaço e no tempo entre as poças de água, a ponto de se adaptarem a permanecer por muito mais tempo em terra
seca, e trocam assim a água pela terra, desenvolvendo na transição artifícios especiais de adaptação à escassez temporária de água.
No caso limite dos répteis, tais artifícios são: a pele impermeável, a qual impede a perda de água pela superfície do corpo, o ovo com casca (que transporta dentro de si o charco original “empacotado” inteligentemente), e a excreção de nitrogênio pela urina sob a forma de ácido úrico (em estado de pasta cristalina quase seca), ao contrário do que ocorre no caso dos anfíbios, providos de abundante urina líquida. O nitrogênio excretado é originado como resíduo do metabolismo das proteínas nos organismos.
As coloridas salamandras, os espetaculares tritões, as ágeis rãs, os versáteis e plásticos sapos e as vermiformes cecílias, como adultos excretam o nitrogênio sob a forma de uréia, dissolvida em grande quantidade de água, e como larvas excretam amônia (que necessita de quantidades maiores ainda de água para ser dissolvida que a uréia, devido a sua alta toxicidade).
Com o olhar pasmo e maravilhado, assistimos agora à invasão e conquista da terra seca.
À medida que os séculos, como numa viagem alucinada por infinitos espaços métricos, desfilam vertiginosamente, a casca esverdeada da biosfera terrestre conserva sempre a
mesma massa total, porém cresce exponencialmente em diversidade e, conseqüentemente, em complexidade.
Criaturas sofisticadas invadem agora os continentes, primeiro as bactérias, os fungos, as plantas, (máquinas espetaculares que transformam energia solar, na forma de luz, em água e gás carbônico em açúcar), depois animais invertebrados, e, finalmente, os vertebrados, todos aprendendo antes a economizar e armazenar a água, o líquido da vida, evitando assim o risco de desidratação, no continente seco uma constante ameaça.
Desta forma, sendo precedidos pelos mestres da adaptação às condições ambientais
variáveis - os transicionais e fenotípicamente plásticos anfíbios -, os escamosos répteis conquistam definitivamente o continente seco.
Hordas de dinossauros, crocodilos gigantes, imensos e incríveis lagartos povoam este luxuriante mundo, quase uniformemente tropical por muitos milhões de anos. O oceano
também fervilha, tantas e variadas as criaturas escamosas que o povoavam, a exemplo dos ictiosáurios, verdadeiros delfins de pesadelo, e dos mosasáurios, horrendos monstros marinhos descendentes do mesmo grupo de lagartos ao qual pertencem os Dragões de Komodo de hoje, os varanídeos. Os ares são cortados, a todo o momento, por assombrosos dragões alados e outros seres, os pterodáctilos, e por último, os recém-evoluídos dinossauros aviformes, e que agora passam a ser chamados de pássaros.
Na escuridão das florestas, fugindo e sobrevivendo aos terríveis dragões escamosos, que durante a noite dormem pesadamente, os mamíferos, descendentes dos répteis, desenvolvem a imaginação a partir da hipertrofia dos sentidos da audição e do olfato
(já que a visão diminui bastante o seu alcance e resolução, à noite, especialmente nas noites muito escuras, sem lua). Assim, surge admiravelmente o intelecto, como um
desdobramento evolutivo natural da nossa habilidade em cheirar o mundo exterior.
O controle interno da temperatura se desenvolve nesta mesma época, a partir dos répteis semelhantes aos mamíferos, elevando a taxa metabólica e libertando os mamíferos da dependência solar como fonte direta principal de energia, manifestada pelos répteis.
Paralelamente, os dinossauros também desenvolveram controle interno da temperatura
corporal, assim como as aves, descendentes daqueles.
Durante muitos milhões de anos, os dragões reinaram, soberanos. Até que num dia terrível, uma coisa verdadeiramente horrenda acontece. O mundo, literalmente, acaba. Um meteoro gigante, um planetesimal, do tamanho de dez montes Everest, cai na Terra, na baía do México, vindo das profundezas do espaço. A Terra, abalada como conseqüência por terríveis tsunamis e maremotos, e terríveis chuvas que queimam como fogo, feitas de ácido sulfúrico, foi blindada da radiação solar por uma cortina de espessas nuvens, gerando assim um forte efeito estufa, à semelhança do que hoje ocorre no vizinho planeta Vênus.
Tais acidentes acontecem de vez em quando na enorme, imensa história da vida, e várias extinções horrendas já quase varreram toda a vida do planeta em outras ocasiões. Esta última vez, ocorrida no período Cretáceo, há cerca de 65 milhões de anos, não é exceção: todos os dinossauros morrem, e repentinamente os nichos ecológicos se esvaziam para dar lugar, em seguida, às diversas e sofisticadas doze ordens de mamíferos que rapidamente evoluem, em leque, preenchendo os lugares e papéis dos antigos e temíveis lagartos, na terra, na água e no ar.
Dos mamíferos insetívoros, semelhantes ao atual mussaranho, evoluíram os diferentes
grupos, dos opossuns ou sariguês, aos primatas, ou mamíferos adaptados à vida nas árvores, criaturas ágeis, inteligentes e curiosas. Posteriormente, com o fim das florestas na pré-história mais recente, desceram das árvores, perderam a cauda e tiveram as mãos (já providas de polegares oponentes) livres para manipular a natureza mais eficientemente, criando ferramentas, armas e outros instrumentos tecnológicos.
Após inventar a escrita, a música e a matemática, e criar civilizações sofisticadas,
assumindo parcialmente o controle das condições físicas do ambiente exterior (e as transformando), os recém-chegados hominídeos (ou macacos-sem-pêlo) singram a terra, os mares, rios e o ar em exóticos e elaborados veículos de transporte.
Até que um dia, aqueles átomos de hidrogênio que se originaram lá atrás, há treze e meio bilhões de anos, finalmente atingem a maturidade no seu desenvolvimento e então decidem retornar para as estrelas, de onde um dia partiram.
E esta é a sua, a minha, e a nossa história, e nela somos apenas a ponta de uma imensa cadeia de formas de vida interligadas, uma corrente infinita de criaturas em sucessão vertiginosa, ininterrupta desde o amanhecer do tempo e da vida sobre a Terra.
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(Ricardo Chemas, 53 anos, nascido em São Paulo e residente em Salvador, é médico,
compositor erudito e neurocientista).
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